As imposições da Ditadura no teatro brasileiro
Renan Freitas
‘O teatro é o primeiro soro que o homem inventou para se proteger da doença da angústia’. A famosa frase do ator francês Jean-Louis Barrault expressa diretamente o momento cultural brasileiro em tempos de Ditadura Militar, amargurado, reprimido.
No pré-militarismo o palco era outro, os artistas movimentavam o país com uma expansão cultural nunca vista antes. Um tempo em que as pessoas tinham liberdade para manifestar suas ideologias sem receio ou medo de represálias. Maria Sílvia Betti, docente de pós-graduação em Artes Cênicas na ECA (Escola de Comunicação e Artes) da USP, explica que “entre o final dos anos 50 e o momento do Golpe, em 1964, o teatro e a cultura viviam um momento de extraordinário florescimento das formas épicas e participativas, seja no ‘Teatro de Arena’ de São Paulo, seja dentro das diversas frentes de criação no Centro Popular de Cultura (CPC), que em 1962 ligou-se oficialmente a UNE (União Nacional dos Estudantes)”, lembra.
A docente afirma que a criação de núcleos artísticos foi extremamente importante para a associação e discussão política na época. No mesmo âmbito, o governo progressista de Juscelino Kubitschek foi um catalisador de ideias na construção de uma nação não apenas estrutural, mas intelectual. “A articulação dos setores de luta sindical nos grandes centros urbanos, o crescimento do movimento estudantil, tanto secundarista como universitário e das frentes de luta pela reforma agrária no campo foram fatores fundamentais”.
Os grupos teatrais tornaram-se condutores de discussões sobre a realidade no país, uma extensão do que a sociedade vivia. “A cultura de esquerda tornou-se extremamente efervescente e diversificada em todas as esferas da produção artística e cultural. Perspectivas de criação, debate e reflexão crítica sobre as questões socioeconômicas do país multiplicaram-se em todos os campos, e a cultura popular passou a ser a tônica em todos eles”, lembrou.
O ator Tonico Pereira, atualmente no ar em ‘A Grande Família’ da Rede Globo, possui larga experiência teatral. Para ele, a participação da classe artística foi fundamental na luta contra a Ditadura. “Ela foi efetiva por parte de algumas pessoas. Eu acho que foi bonita. Os caminhos foram vários, não era uma opção coletiva, cada um tinha sua maneira de participar. Às vezes deixando de lado o envolvimento político, o que não foi o meu caso e do meu grupo”, explica. Segundo o ator a companhia que fazia parte era universitária, formada para fazer teatro politizado.
Não tardou para o avanço militar no país afetar diretamente aqueles que impeliam em lutar contra a repressão. As sanções chegaram, obviamente, aos palcos. “A Ditadura impôs a censura em textos e espetáculos, cortou todos os canais que ligavam intelectuais e proletariado”, enfatizou Maria. A estudiosa lembra que a partir de 1968 a censura, até então exercida no âmbito dos estados, passou à alçada da Polícia Federal em Brasília. “Esta era um braço do Regime Militar, e seu poder de ingerência era irrestrito. No setor do teatro a Ditadura impediu, literalmente, que centenas de espetáculos fossem encenados e pudessem assim atingir o público ao qual haviam sido destinados”, acrescenta.
“Nós, particularmente, vivemos momentos de muita tensão. Companheiros foram presos em um processo de censura profundamente atuante em relação ao nosso trabalho. Foi uma sobrevivência difícil, onde muita gente ficou pelo caminho”, lembra Tonico.
Os artistas sentindo-se repelidos lutaram com as armas que tinham em mãos: a voz a fim de desmantelar o crescente poder ditatorial. “Articulou-se um amplo e latente movimento de resistência. Protestos contra a Ditadura passaram a mobilizar centenas de artistas em marchas e atos públicos em São Paulo, no Rio de Janeiro e em outras capitais. Em junho de 1968, realizou-se em São Paulo a ‘Feira Paulista de Opinião’, marco da resistência dentro do teatro naquele momento”, relata Maria.
Para Tonico Pereira, os censores eram funcionários públicos que não tinham formação e cultura para discernir o que eram críticas ao Regime Militar imposto. Cortavam textos teatrais indiscriminadamente, não sabiam o que era uma obra de arte. “A gente vivia um processo em que, por exemplo, se fazíamos uma excursão tínhamos que fazer sempre um espetáculo para a censura em qualquer cidade que fossemos. Antes de a peça estrear. Era muito desgastante porque nos levava a uma vida de paranoia”, lamenta.
Em tempos de tensão social, o então General Juvêncio Façanha declarava publicamente seu desdenho pelo movimento artístico que era contra a Ditadura. Certa vez disse que ‘a classe teatral só tem intelectuais, pés sujos, desvairados e vagabundos, que entendem de tudo, menos de teatro’.
Para a docente da USP essa afirmação foi uma demonstração aberta de menosprezo e de agressão aos artistas e intelectuais do teatro de modo geral. “Diante da censura a um número crescente de espetáculos, foram organizadas vigílias e atos públicos, e uma comissão se articulou com o objetivo de pressionar o ministro da Justiça Luís Antônio da Gama e Silva. Mesmo diante de todo o clamor de protesto, em 13 de dezembro de 1968 foi impetrado o Ato Institucional número 5 implantando a censura prévia aos órgãos de comunicação”. A partir de então se sucedeu um dos momentos mais terríveis quanto à imposição dos militares contra as vozes brasileiras. Ninguém poderia falar.
Pereira, como jovem em tempos ditatoriais, compara a juventude da época com a atual. Para ele, a sociedade era completamente informada e muito efetiva em caminhos tomados no combate ao Regime. “Alienados nós não éramos, de jeito nenhum. Éramos julgados por pessoas que não tinham condições nenhuma de saber o que era uma obra de arte. Era um nível de querer prender o filósofo Sócrates”, ironiza.
Pós-Ditadura: O teatro brasileiro se torna independente
Com o fim do Regime Militar, diversos espetáculos que foram banidos do circuito cultural puderam ganhar os palcos. Esse período ficou conhecido como a ‘Abertura Democrática’. “Com a crescente diluição e negação do caráter público da memória da Ditadura, foram se tornando cada vez mais vagas e lacunares as referências que as gerações nascidas nos anos 80 e 90 passaram a ter a respeito. Caracterizando, assim, claramente o processo que Vladimir Safatle e Edson Teles denunciam no livro que organizaram: ‘O que resta da Ditadura: a exceção brasileira’”, aponta Betti.
“Eu fiz uma peça que, inclusive, foi a primeira a ser liberada pela censura que foi o ‘Papa Highirte’, com o Sérgio Britto”, lembra Tonico. Para ele, o teatro é muito estranho, pois teve seu momento de liberdade, exerceu essa liberdade durante certo tempo após o Regime Militar, mas depois foi vencido pela IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais). Existe alienação de uma geração de estudantes e sociedade em que o individualismo virou a predominância do pensamento. O que dificulta pra todo mundo em todos os sentidos. “Inclusive no teatro, cinema, televisão e para toda vida social”, completa.
Maria Sílvia cita que “em 1998 diversos grupos teatrais paulistas articularam-se dentro do ‘Arte contra a Barbárie’, um movimento de luta em prol do financiamento público do trabalho realizado com base em pesquisa continuada. Desse movimento resultaria, em 2002, a aprovação e a promulgação da Lei de Fomento ao Teatro no Município de São Paulo, e a criação de “O Sarrafo”, jornal de intervenção e debate do setor teatral”. Para ela, tratou-se de manifestações que evidenciam vigor e empenho em prol da luta política e artística pela transformação das condições de trabalho e pelo exercício de um pensamento crítico diante do contexto social em que se insere o teatro.
O teatro atual e uma nova Ditadura
Para Tonico Pereira, os atores nos palcos possuem liberdade para se expressar sobre a Ditadura. Atualmente, por exemplo, diversas peças tratam do assunto como o musical “Rita Lee Mora ao Lado”, em cartaz. “Acho que a gente vive muito mais uma censura econômica, ela que mais nos impede de trabalhar. Eu acho o patrocínio, por exemplo, uma criação do diabo, porque ele nos limita no sentido da criação”, finaliza.
Lutar moralmente e ideologicamente contra uma repressão não pleiteada era lógica e previsivelmente, esperado por intelectuais que não queriam seus direitos de expressão tomados por um governo ditatorial. Frases como ‘a desobediência é uma virtude necessária para à criatividade’ de Raul Seixas, simplificam os 20 anos de enjaulamento da voz artística nacional. Em tempo, os artistas atuais podem se expressar sem medos.
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