Um fiel torturado
Natalia Nista e Francisco Gardel
Com o medo de que o comunismo fosse implantado no Brasil, a Igreja combateu-o, incitando os seus fiéis a repudiá-lo. Nas missas, os padres acusavam os comunistas de hereges e ateus de inimigos da fé. Enganados pelo sentimento anticomunista e pelo falso golpe que a esquerda preparava, a Igreja acolheu os militares de braços abertos. No entanto, a mesma começara a observar de que o regime estava agindo de forma repressiva e autoritária.
Diante da nova posição da Igreja, a ditadura militar prendeu, torturou e matou padres. Entretanto, a Teologia da Libertação, uma consequência pós ditadura, que deu os primeiros passos em 1952, se tornou uma grande força no Brasil a partir de 1970. O apoio inicial da Igreja ao golpe de 1964 deu a sua grande reviravolta quando a violência do regime matou e torturou quem lhe contestasse, desde então, a Igreja no Brasil pendeu quase toda contra a ditadura militar.
Aos 92 anos, Pe. Thomaz de Aquino Prata relata as lembranças da época da ditadura. Durante o golpe, ele ministrava sociologia nas faculdades de Uberada e Uberlândia e era assistente religioso da Juventude Estudantil de Uberaba. Foi perseguido durante dez anos e psicologicamente torturado.
A história de Pe. Prata não foi só marcada por momentos ruins, a ditadura trouxe muitas surpresas positivas para o fiel. Hoje, aposentado, Pe. Prata se dedica a narrar a história que mudou sua vida.
Quantos anos o senhor tinha quando a ditadura se instalou no país?
Quando os militares deram o golpe eu tinha pouco mais de 40 anos. Nasci em 1922, tenho mais de 90 anos, mas ainda bem lúcido.
Que profissão exercia na época?
Na época, eu era professor de Sociologia nas Faculdades de Uberaba e Uberlândia. Não era pároco, mas assistente religioso da Juventude Estudantil Católica (JEC).
Como era lecionar sociologia durante a ditadura?
Para os defensores da situação, lecionar Sociologia era pregar o comunismo.
Como foi sua relação com a ditadura?
Havia grupos organizados nos diversos setores da comunidade. Eram grupos não apenas de formação religiosa, mas também de tomada de consciência da situação política. Como dizíamos, na época, eram grupos de “politização”. Nos colégios, nas faculdades, na área agrícola, eram muito bem organizados esses grupos. A JEC (Juventude Estudantil Católica), A JUC, para os universitários, a JAC para os agrários, a JOC para os operários, a JIC para os que chamávamos de independentes. Aos domingos, eu celebrava a Missa dos Estudantes. Era um ato religioso, mas também uma oportunidade de politização, isto é, de tomada de consciência da situação nacional, das injustiças, dos males do capitalismo. Tínhamos (falo de Uberaba) um jornalzinho mimeografado, o “Paredón”, titulo bastante provocante.
Os estudantes da universidade lidavam com a ditadura de que maneira?
Os estudantes da época eram bastante politizados. Cada colégio possuía um Grêmio para estudos sociais e nas faculdades havia diretórios com a mesma finalidade. Na época, década de 60, a situação política era bastante tumultuada, principalmente depois do suicídio de Getúlio Vargas e da ascensão de Jango Goulart. Temendo coisa pior, os militares tomaram o poder pela força das armas. O golpe nos assustou e destruiu nossas esperanças de uma situação política mais humana, mais voltada para o povo, principalmente para o proletariado. Éramos chamados de “o pessoal da esquerda”. Para eles, sinônimo de comunistas. Logo de início, os líderes proletários, estudantis, religiosos, foram muito visados. Muitos foram sumariamente mortos ou presos e torturados.
E os religiosos da época?
Na área religiosa, havia um grupo de padres e de bispos que insistiam muito na libertação político-econômica, na justiça social. Eram chamados de “padres comunistas”. Um militar chegou a afirmar que os padres eram comunistas e “não sabiam que eram comunistas”, o clima tornou-se muito pesado. Vivíamos sobressaltados, esperando pelo pior.
Todos os religiosos tinham a mesma opinião sobre o governo?
Na área religiosa havia grupos avançados e grupos reacionários. Não falavam a mesma linguagem. Havia bispos de mentalidade bem aberta como havia outros que apoiavam o golpe. Entre os avançados, “comunistas” lembro-me de Dom Helder Câmara, Dom Evaristo Arns, Dom Mousinho, Dom Fernando e alguns outros. Entre os que apoiavam os militares, lembro-me bem de Dom Agnelo Rossi. Este chegou a declarar a jornalistas europeus que “não havia tortura no Brasil”. Havia outros piores ainda. A divisão na Igreja era grande. Ainda hoje a situação não é diferente, principalmente na área da Teologia. Há um centralismo massacrante da Cúria Romana, dogmas superados, linguagem totalmente fora do tempo. O Papa atual, Francisco, trouxe uma certa esperança de reformas básicas. Todos nós esperamos que haja mudanças fundamentais.
O senhor foi torturado pelos militares?
A partir de 1964 tive dissabores com os detentores do Golpe Militar. Não fui torturado fisicamente, mas psicologicamente e profissionalmente fui atingido, ameaçado e perseguido. Fui detido e conduzido ao Quartel Militar. Não estive preso, apenas interrogado cruel e exaustivamente.
Como isso aconteceu?
Sentado num tamborete, durante horas, fui questionado por uma banca militar. Eram militares graduados, vindos de fora. Havia contra mim doze acusações, eles citaram alguns nomes das pessoas que haviam me acusado: alguns professores, alguns pais de alunos, um padre e, a maioria deles, fazendeiros. O método dos militares era vencer pela confusão mental. Depois de duas horas de interrogatório, voltavam ao início e repetiam as mesmas acusações. Isto por várias vezes. Depois de certas horas de repetições, a gente entrava num clima de confusão mental. Na quinta vez, eu me esquecia como tinha respondido na primeira, era uma técnica inteligente. Deram-me a impressão de que eram bem treinados naquela metodologia de arrancar a verdade.
Como o senhor lidava com os militares?
Um fato inesperado que me tranquilizou um pouco foi o seguinte. Quando ia deixando o prédio, ouvi alguém de chamando, era um daqueles coronéis. Disse-me o seguinte: “Peço-lhe desculpas pelo que fizemos. Sou católico, sou amigo de vários padres na cidade onde reside minha família. Somos militares e somos obrigados a cumprir as ordens que nos são transmitidas. Prometo-lhe enviar ao senhor o resultado deste processo, como também os nomes de seus acusadores. Virá sem assinatura e sem o nome do remetente. Peço-lhe apenas que o documento seja destruído. Fique tranquilo”. Realmente, aquele militar cumpriu sua promessa. Livrou-me da prisão, mas as coisas não acabaram, continuei sendo vigiado até depois do início da década de 70.
O que mudou depois de ser interrogado pelos militares?
Fui vigiado durante mais de dez anos, havia informantes por todos os cantos. Perdi um emprego na Faculdade de Ciências Econômicas, com 4 cruzes, o que, para eles, significava elemento de alta periculosidade. Minhas pregações eram gravadas. Também na Faculdade, os resumo de minhas aulas eram anotados. Em Uberaba, eu sabia da existência de um informante do SNI (Serviço Nacional de Informações). Lembro-me apenas de pessoas que me advertiam: “Padre, tome o máximo de cuidado. O senhor está sob vigilância contínua”. Eu vivia em estado de sobressalto, de tensão nervosa.
Qual foi o fato que mais marcou o senhor durante a ditadura?
Certa noite fui chamado para atender um doente em um dos hospitais de Uberaba, o quarto estava cheio de gente e pedi a todos que nos deixassem a sós, apenas um senhor ficou lá dentro. Depois de conversas com a paciente, ela foi se acalmando e abriu os olhos. Orei dizendo a ela que Deus era um Pai de amor e de perdão, que tivesse confiança e outras coisas mais. Retirei-me logo em seguida. Três dias depois, apareceu em minha casa um senhor desconhecido, era o chefe do SNI na cidade. Pensei o pior: veio me buscar. “Padre Prata, tomei a liberdade de vir até sua residência para pedir perdão de todo o mal que pratiquei ao senhor. Aquela senhora que o senhor atendeu dias atrás no hospital era minha esposa. O senhor deve ter notado que não me retirei do quarto. O carinho que o senhor teve com ela me comoveu. Naquele momento percebi que aquelas palavras de conforto não podiam ser de um coração ateu, de um subversivo, de um comunista. Vou procurar destruir o que fiz. Todas as informações que eu enviar serão previamente mostradas ao senhor.” São coisas que acontecem em nossas vidas que a gente não sabe o “como” nem o “por quê”. Apenas acontecem. Algum tempo depois votaram a “lei da anistia”. Por insistência de parentes e amigos, recorri narrando toda a história de minha vida, de tudo que aconteceu, coisas que nem sequer mencionei aqui para não me estender demais.