Opinião: Memórias nunca póstumas da ditadura
Isadora Stentzler
Triste fora a véspera do primeiro de abril de 1964. Antes se tratasse de um prelúdio cômico a se unir às sátiras do dia da mentira, mas não. Foi real. Foi ditatorial. Naquela terça-feira de 31 de março, quando o general Olympio Mourão se rebelou em Minas Gerais, não se pensava em golpe. Por ora uma intentona passível de ser sufocada. Mas não. Tratava-se da queda do Brasil. Este ano, no cinquentenário desta sangria maldita abitolada por injúrias, calúnias e toda a sorte de mentiras, sabe-se que a noite que durou 21 anos fora, na verdade, a cólera da democracia. Uma peste negra a petrificar no passado.
À sombra do exílio de João Belchior Marques Goulart, o João Goulart, ou presidente Jango, feras ocuparam as ruas e bitolaram o avanço por ora anunciado.
A ideia, que de lúcida não tinha nem a liderança, foi tramada por agentes fardados. Insatisfeitos com a renúncia de Jânio Quadros e a chegada de Goulart com sua inclinação popular ao poder, arquitetaram negociações políticas entre as forças armadas, tropas legalistas e ícones do governo civil para fortificar o golpe.
Jango, que chegara ao cargo pela honra da legalidade em 1961, era o descendente por mérito de Getúlio Vargas. Como seu ministro do trabalho, fora autor do reajuste em 100% do salário mínimo, abriu campo para a reforma agrária e carcerária, criou o programa de financiamento de casas, criou o Estatuto do Trabalhador Rural e regulamentou empréstimos pelo Instituto de Aposentadoria. Com ele, a década de 50 havia encerrado com um legado de prata no país. Não de ouro devido aos problemas econômicos. Em todo o caso, uma era, infelizmente, abafada pelas dores da ditadura.
Depois da noite de 31 de março, Jango viajou para Porto Alegre, exilou-se no Uruguai, fugiu para a Argentina e então morreu. Ou de problemas cardíacos, como defende a versão oficial, ou de envenenamento, como garante a família que vê na morte mais um assassinato da Operação Condor. Enquanto isso, na república, Humberto de Alencar Castelo Branco assumiu a presidência por meio do Ato Institucional Número Um. O primeiro presidente do regime.
Mas não foi só a destituição de Jango ou a morte de Jango que compôs o quadro sombrio da ditadura. São as 357 vítimas oficiais, as 600 reivindicadas, os 1.100 indígenas e as outras tantas pessoas que se tornaram em dezenas e centenas sem paradeiro conhecido. São os presos políticos, as torturas, os choques, as mentiras, os espancamentos, o ódio, o machismo, os exílios, os exilados, o abandono, as dores, as cicatrizes, a solidão. Cóleras de uma tal dita maldita ditadura.
Naqueles tempos, feliz quem fosse um robocop, programado e alinhado ao sistema para não sofrer em porões pelo crime da liberdade. Pois qual estudante de mente inquieta poderia encontrar paz no boicote ao pensamento? Qual livre arbítrio poderia ser exercido com o veto do ir e vir? Ainda que pautassem milagres econômicos, estes não seriam capazes de dar fôlego de vida a Jango, ao militante Carlos Marighela, ao jornalista Vladmir Herzog e aos fantasmas sem nome que emanam gritos por justiça dos amaldiçoados calabouços do Doi Codi.
Lembrar-se do cinquentenário de tais dores é a melhor prestação de serviço à sociedade, pois, uma vez lembrado, jamais será esquecido e retomado – ao menos pelos que de bem ainda restam no país. Deveras seria magnífico dizer que se foram às primaveras da ditadura. Mas não. Esta sangria ainda permanece acesa em corações autoritários que, infelizmente, abusam do poder que ainda emanam.
Sobre isto, povo brasileiro, nos resta jogar flores e enterrar a sete palmos os resquícios que assombram nosso século. Mas nunca, jamais, esquecer e negar que a falaciosa “ditabranda” fora, na verdade, o pior tempo do Brasil.