A Ditadura e sua contribuição para o cinema nacional
Renan Freitas
Em 1964, o Golpe Militar afetou o Brasil em várias esferas. Políticas, econômicas e não menos importante, culturais. O ambiente cinematográfico vinha de um promissor movimento tendo o chamado ‘Cinema Novo’ como responsável.
Na sétima arte, a censura ditatorial atuou alterando ou removendo trechos de filmes, títulos ou mesmo a obra como um todo. Também, longas foram impedidos de serem filmados mediante reprovação de seus roteiros pelas autoridades da época. Alguns só puderam ser realizados com o fim do Regime Militar.
De acordo com a professora de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFMG), Alessandra Brum, o Ato Institucional Número Cinco foi um divisor de águas. Vigorado durante o governo do presidente Artur da Costa e Silva, o decreto tinha entre seus itens a proibição de atividades ou manifestações sobre assuntos de natureza política. “No início os censores diziam estar atuando em defesa da moral e dos bons costumes, mas depois do decreto AI-5, nem isso era mais necessário, o Ato Institucional já justificava por si só um corte ou a proibição de uma obra inteira”, explica.
Para a docente, essa medida servia para assegurar o poder do Estado autoritário e militar. “O sonho de toda uma geração, que acreditava que seria possível mudar o mundo com filmes, cai por terra em definitivo depois do AI-5, em 1968”, aponta.
Mesmo com tantas imposições, os cineastas da época não deixavam de emitir suas mensagens contra o Regime imposto. Para Tristan Aronovich, cineasta formado pela Universidade de Harvard e Califórnia Institute of The Arts nos Estados Unidos, os responsáveis por analisar obras culturais nem sempre eram efetivos nessa tarefa. “Era sabido, no entanto, que os sensores não eram lá grandes experts culturais dotados de muita sensibilidade artística, dessa forma, muitos ataques ao Regime acabaram passando e sendo aprovados pelos sensores sem que os mesmos percebessem tais ataques e/ou críticas habilmente inseridos e camuflados nas obras”, enaltece Aronovich.
Eduardo Coutinho, morto no início do ano, foi um dos vários cineastas e documentaristas brasileiros que foi obrigado a produzir seus filmes apenas com o fim da Ditadura. ‘Cabra Marcado Para Morrer’, por exemplo, só foi concluído 17 anos após sua interrupção nos anos de chumbo.
O jornalista de cinema do Portal UOL, Roberto Sadovski, credita a sétima arte como uma forma de manifestação contra o poder vigente. “As pessoas não agiam por medo, e talvez os filmes do período, como ‘Macunaíma’ e ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’, tenham sido tão geniais: precisavam refletir a realidade criando outra por cima”, reflete.
Sadovski salienta que um efeito colateral ocorreu nesse período, ao mesmo tempo em que o cinema tradicional era freado, outro modelo de longas ganhava destaque. “O cinema marginal criou força, com filmes baratos e pouco vistos. Curiosamente, a mesma Ditadura criou a Embrafilme em 1969 para bancar o cinema nacional, com boa parte do dinheiro concentrado em cineastas cariocas”.
A ditadura contribui para o crescimento do mercado cinematográfico no Brasil
A Embrafilme, extinta empresa estatal brasileira, produtora e distribuidora de produtos cinematográficos, teve extrema importância no mercado cultural do país. Desempenhou um papel central na produção e difusão do cinema brasileiro no Brasil e no exterior, com filmes premiados em importantes festivais internacionais.
Dentre seus diretores, destaca-se o antigo ministro das Relações Exteriores do governo Lula e atual ministro da Defesa, Celso Amorim, que não levou por muito tempo sua carreira como cineasta. Seus filhos Vicente Amorim, Pedro Amorim e João Gabriel, se encarregaram de continuar o legado nas telas do político brasileiro.
“Curiosamente o período da Ditadura Militar é um momento bastante vigoroso para o cinema brasileiro.Não podemos esquecer que a Embrafilme foi criada em 1969, ou seja, pelo Regime Militar, que atendeu as principais reivindicações do setor cinematográfico no que diz respeito às políticas públicas, mesmo que sem consultá-lo”, explica Alessandra Brum.
No período em que esteve em atividade, a autarquia produziu quantidades relevantes de filmes, cadência não acompanhada pelo mercado brasileiro após seu fim. “Os números falam por si, na década de 1980, eram lançados em média 80 filmes por ano; em 1990, quando o Collor extinguiu a Embrafilme, foram lançados apenas sete; em 1991 - dez filmes; em 1992 apenas três longas”,destaca a docente.
Com a cessação da Ditadura em 1985, a Embrafilme ainda possuía fôlego no fomento de produções cinematográficas nacionais. “Mesmo ao fim do Regime Militar, a Embrafilme continuava dando as cartas – e foi assim por mais cinco anos pós-Ditadura. Pouco antes do fim do Regime, porém, a crise econômica fez o dinheiro pra fazer cinema diminuir”, expõe Sadovski.
Tristan Aronovich ironiza ao dizer que com o fim do Regime Militar e da Embrafilme, o cinema brasileiro amargou um período de seca até atingir virtualmente sua extinção entre o final dos anos 80 e início dos anos 90. “Digo ironicamente porque, justamente muitos dos cineastas que faziam uma arte combativa, um cinema intelectual e de denúncia, também ficaram acostumados e habituados com o modus-operandi estabelecido durante a Ditadura e com seu fim não sabiam exatamente como proceder”, constata.
Aronovich enxerga nesse esquema de dependência financeira um paradoxo.Para ele, os artistas criticavam o sistema, porém dependiam desse mesmo sistema.“Evidentemente, havia exceções, como os cineastas ‘guerrilheiros’ da cultuada ‘boca do lixo’de São Paulo. Mas, com o fim dos subsídios e dos mecanismos proporcionados pela Embrafilme, o ‘cinemão’ brasileiro ficou órfão e, apenas nos últimos 10 anos, tem conseguido aos trancos e barrancos recuperar um pouco da força”, finaliza.
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