Zuzu Angel, uma nota fora de ordem na partitura do Regime Militar
Filha da notória estilista, Hildegard Angel busca, 50 anos após o Golpe Militar, manter vivas as memórias de sua mãe
Renan Freitas
‘Eu sou a moda brasileira’, dizia a estilista mais famosa de seu tempo. Zuzu Angel, batizada Zuleika de Souza Netto, introduziu no país a brasilidade nas roupas, algo inédito em seu tempo. Mineira de Curvelo, passou boa parte da vida na Bahia, estado que a inspirou na criação de suas obras. Nos anos 70, já em solo carioca, começou sua grife ao inaugurar uma boutique em Ipanema. Não tardou para se tornar mundialmente famosa, em especial nos Estados Unidos.
Ainda hoje o meio cultural brasileiro valoriza suas criações. Em 2014, 50 anos do Golpe Militar, o Itaú Cultural montou uma Ocupação para expor os trabalhos de Zuzu Angel. A ideia, segundo os organizadores, é trazer à tona a multiplicidade de sua obra.
No auge do sucesso profissional, a estilista foi massacrada moralmente pelo misterioso sumiço de seu primogênito, Stuart Angel. O então estudante de economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro era, também, militante político e membro do MR-8, grupo de caráter socialista contrário ao governo imposto.
Stuart Angel foi morto aos 25 anos, em 14 de junho de 1971, em decorrência de torturas sofridas por membros da CISA (Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica). Utilizando o sentimento maternal, Zuzu foi uma brasileira que lutou contra os militares na busca por informações que levassem ao corpo de seu filho desaparecido. Entretanto, nunca pôde enterrá-lo; Stuart jamais foi encontrado. Zuzu morreu em um misterioso acidente automobilístico em abril de 1976.
Com o intuito de não deixar que a memória da notória estilista fosse esquecida, sua filha, a jornalista e atriz Hildegard Angel criou o Instituto Zuzu Angel. Na entrevista abaixo a caçula de Zuzu fala como é conviver com o passado que assombra sua vida e como os jovens brasileiros de hoje se diferenciam em comparação ao período que seu irmão viveu.
1. Como você avalia a importância do Instituto Zuzu Angel em tempos pós-Ditadura Militar?
Muito maior do que poderia supor. Já que praticamente não há mais Resistência. Vemos os movimentos de Memória dos Anos de Chumbo, antes tão vigorosos e ativos, hoje enfraquecidos, posso dizer até mesmo aparentemente cansados. Assim, o Instituto Zuzu Angel ao não se calar cumpre um papel importante num momento em que vemos recrudescer o ódio nas redes sociais, fomentado por radicais direitistas, recorrendo a toda a sorte de expedientes vis, distorções dos fatos, sem qualquer limite de decência ou noção de civilidade.
Nossos familiares e heróis foram imolados, os deles mataram e trucidaram. Contudo, o ódio, a raiva, o ressentimento, a sede de sangue está neles. Em nós, o patriotismo e o sonho da construção de um Brasil amadurecido e digno, que valorize a vida humana e não varra para debaixo do tapete nossa memória, para que aqui não se perpetue o descaso para com os princípios básicos de um Estado de Direito.
2. Você acha que o fantasma da Ditadura ainda é presente mesmo após seu fim?
Ele nos assombra a cada dia, hora, minuto, segundo. As "viúvas da ditadura", que por alguns anos disfarçaram sua vocação, agora de novo despem a fantasia e revelam a face vocacionada do golpismo. São as "udenistas" de outrora. As saudosas do Lacerda. Metáfora que uso para falar daqueles de ontem e de hoje, filhotes da Ditadura, embalados pelo sonho de uma elite direitista que se considera à imagem e semelhança da perfeição e julga que tudo que dela parte é o certo e o melhor para o país.
Olha para o povo, o pobre, com desdém e desprezo. Sente engulhos ao ver os mal vestidos nos aeroportos, podendo também usufruir das viagens aéreas, dos pacotes de turismo acessíveis, privilégios antes alcançados apenas por classes mais elevadas. Não enxerga mérito em qualquer progresso ou melhora para os carentes. Ao contrário, o Eldorado seria vê-los varridos do mapa.
3. Sua mãe foi movida pela coragem ao enfrentar as autoridades na época de Regime Militar. Acha que falta essa iniciativa aos brasileiros hoje?
Minha mãe foi uma nota fora de ordem na partitura do Regime Militar que mantinha todo o país perfilado batendo continência aos seus hinos de mando e horror. Achavam que mamãe era louca. Quando loucos catatônicos estavam todos os brasileiros que se deixavam subjugar, se calavam e não reagiam. Hoje, os brasileiros tentam pensar por si, mas poucos sabem como. A maioria é mal informada.
4. Como sua mãe utilizou a moda para protestar contra o Regime Militar imposto?
Bordando mensagens singelas em seus vestidos, estampando andorinhas pretas nos tecidos, usando luto fechado, fazendo de si mesmas um estandarte vivo da agonia, carregando na cintura crucifixos dos jovens barbarizados.
5. Como é manter a memória e a luta de Zuzu vivas? Existe repressão política no trabalho do Instituto?
É penoso, pois fico muito cansada e muito sofrida, mexendo sempre nessas feridas, como se fosse um instrumento contínuo de autoflagelo. Não há repressão política. Da política não há nada. Nem repressão nem apoio.
6. Assim como Stuart Angel, você chegou a considerar participar do movimento contra a Ditadura?
Não. Eu era cinco anos mais jovem. Não era ideologicamente formada como ele. Eu o admirava muito, o aplaudia, apoiava e apóio em todas as ocasiões da minha vida, mas não tinha sua formação ideológica. Era uma menina romântica. Quando vi, já estavam perseguindo, prendendo, torturando e matando meu irmão desaparecido.
7. Movimentos como os de junho de 2013 provam que a internet é um meio de organizar encontros contra o governo. Como diferencia os atuais aos que Stuart participou em vida?
Acho que a juventude de hoje está despolitizada. Não é ideológica. Os movimentos começaram devido ao preço das passagens de ônibus, depois derivaram para muitas coisas. Acho tudo muito confuso e sem objetividade.
8. Você acredita que a morte de Zuzu se deu em decorrência de um acidente? Como reagiu com a declaração do site Wikileaks em 2013? (Em 2013, o site Wikileaks vazou documentos que confirmam que Zuzu Angel e o filho Stuart Angel foram assassinados pelo Regime Militar. Os documentos são da embaixada dos Estados Unidos em Brasília).
Não, não acredito. Tanto que, em 1998, consegui que o Governo Brasileiro (Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos) empreendesse uma investigação e provasse que não foi um acidente, foi um assassinato por agentes do regime militar. É oficial. Incrível que a imprensa brasileira até hoje nâo tenha tomado conhecimento. O que o site Wikileaks revelou eu já sabia, pois esses documentos eram tudo o que a gente já sabia e sabia e sabia.