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Adiel Machado: o espelho da juventude recém-saída da Ditadura

Renan Freitas

O encontro para a entrevista aconteceu em uma chácara, ainda na zona urbana da cidade. Manhã de sábado, um dia de sol agradável. Lá, uma senhora muito simpática me recebe e, educadamente, me conduz para o interior de sua casa. “Ele está lá dentro, pode entrar”, ela diz. Adiel Machado está na cozinha da casa, sujeito alto e com ares de intelecto, jovial, educado e também receptivo.

Ele me leva para mostrar o lugar, um ambiente com ares gentis e praticamente um refúgio da vida urbana. “Olha, esse aqui é meu cachorro”, diz Adiel apresentando um enorme cão. O questiono da raça do animal. “É um dogue alemão”. Essa tranquilidade existente no recinto de certa forma nos preparou para a conversa pesada que tivemos sobre a vida, a sociedade e os ares frenéticos do anos 80.

Todo papo possui um início, e Adiel exprimiu o começo de sua vida. “Minha infância foi mágica, eu era muito introspectivo, a arte sempre me chamou a atenção”. Seu modo de falar é realmente de uma pessoa que cresceu com o teatro, gesticula em cada palavra que cita.

Cultura é assunto que o intelectual homem de fala mansa possui familiaridade, segundo ele, ator desde sempre.“Eu cresci com a televisão da década de 70 e 80, não era todo mundo que podia ter um aparelho de TV em casa naquela época, então assistia na casa da minha tia”. Nessa imersão precoce na cultura, Adiel cita uma passagem que marcou sua vida: “aqueles que acordam com o dia, se tornam imperadores”. ”Vi essa frase em um filme da Jodie Foster, e minha vida começou a se basear nela”.

Machado estava numa tranquilidade incrível naqueles dias. Começou no teatro devido às influências televisivas, mas a grande responsável pela imersão nos palcos foi sua sensibilidade para com o próximo. “Eu amo as pessoas, amo o ser humano”. Nota-se que é um homem vivido, que aprendeu muito com os erros e acertos de sua vida, tem na humanidade sua maior inspiração para a interpretação e entendimento vital. “Em 1985 eu estava na escola, e tinha um menino lá que fazia teatro, fui falar com ele pra saber como entrar nesse meio. Ele tinha uma companhia teatral, e me convidou pra ir a um encontro”. O tal grupo era o Centro de Estudos Teatrais Amador, ali ele conheceu pessoas que fizeram e fazem história no teatro paulista.

Ainda em 1985, Adiel conheceu Rose Tomitsuka, uma das influenciadoras de sua carreira. Ela se formou em artes dramáticas pela USP, e em vários momentos levou-o para os testes na Universidade de São Paulo. “Eu costumava ir à EAD (Escola de Artes Dramáticas) para fazer réplica para os atores que estavam se formando pela instituição. Diversas vezes fui elogiado por profissionais renomados que ali estavam”. Adiel nunca se formou pela EAD, era um homem que via o mundo poeticamente, segundo ele, nunca viveu a vida real. Não queria que sua carreira como ator se industrializasse, se sentia feliz sendo um intérprete hippie.

Nesse momento da conversa, a senhora que me recepcionou trás um suco de abacaxi. Nessa pausa, percebo novamente como é lindo o lugar, o dogue alemão que passara a noite toda preso se divertia muito, aproveitando seu momento de liberdade. Rolava no gramado, brincava com algumas crianças que estavam na casa. Metaforicamente é possível associar a vida do cão com a de seu dono. Adiel passou um longo e sofrido período como dependente químico, depois de muito tempo encarcerado nessa vida, hoje aproveita a liberdade.

“Dentro desse movimento artístico eu já tinha me envolvido com entorpecentes, foi uma época em que coisas legais aconteceram comigo como ator, mas junto vieram as drogas. E olha que eu já era um cara com mente flutuante”. Adiel era um artista, tinha alma de um, mas esse artista foi morrendo ao mesmo tempo em que o submundo da sociedade ganhava espaço. Seu semblante se transforma quando pensa nessa fase da vida, é nítido que algo não foi bom nessa época.

Adiel é um apaixonado por cinema, teatro, literatura, poesia, pela vida e não surpreendentemente, música. Ele é reflexo de seu tempo, lá nos confins dos anos 80 e 90 uma enérgica febre de revolução assolou esta nação tendo certo Cazuza como porta-voz.

“Eu tinha tudo de Cazuza; acompanhava Cazuza; eu me tornei um estudante de Cazuza”.

Pausa para um pensamento íntimo.

“Depois, quando fiquei maduro, eu entendi que o Cazuza era um burguesinho ‘porra loca’”.

Outra pausa. Parece pensar muito antes de falar qualquer palavra. Contido.

“Ele não tinha feito nada, absolutamente nada pelo país, essa admiração que as pessoas têm por ele... eu acho degradante, acho uma pena, acho feio o que ele fez”. Talvez estivesse se lembrando do episódio em que o cantor cuspiu na bandeira nacional. Talvez.

Recobrando-se de um momento de leve estresse, Adiel citou que desencanou de Cazuza, mas que uma música em especial faz questão de levar para a vida: codinome beija-flor. “Você sonhava acordada; um jeito de não sentir dor; prendia o choro e aguava o bom amor”.

Assim como na canção, Machado sonhava acordado, sentia necessidade de viver em uma realidade que naquele momento da infância, a seu modo, não era dele. E confessa:“eu queria ser artista no meio de uma família muito pobre, e meu pai queria que eu fosse trabalhar. Em 86 fui ser empregado de uma metalúrgica, infeliz pra caramba. Lá fiquei até 1988, abandonei tudo pra ir estudar teatro em Campinas, e nessa época comprei a maior briga com meu pai”.

Hoje a relação de Adiel com seu pai está harmoniosa, os conflitos cessaram, o tempo se encarregou disso. José Machado é um senhor tranquilo, já passou por momentos difíceis, deixava de comer para alimentar seus sete filhos. História recorrente na vida de vários pais de família no Brasil.

Esse ambiente de diferenças gritantes entre a sociedade burguesa e a pobre, fez nos anos 80 desencadear uma revolução entre a juventude da época. O Brasil era recém-saído de uma ditadura militar e os ânimos eram exaltados, a juventude era aflita e cobrava mudanças.

“É deprimente o que toca na rádio hoje, é deprimente o que as pessoas ouvem nas rádios. Chico Buarque tem uma canção chamada João e Maria, já ouviu falar?”

Respondo: Não.

“Mas certamente você já ouviu: Agora eu era herói; e o meu cavalo só falava inglês; a noiva do cowboy; era você além das outras três... essa música tocava na rádio, o dia inteiro, no começo da década de 80”.

Adiel pausa a cantoria e diz:

“Aí de repente acabava essa música e tocava uma assim: quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração? E quem irá dizer quem não existe razão?”.

O assunto começa a efervescer a mente de ambos, entrevistado e entrevistador: Legião Urbana. “Eles lançaram um CD chamado ‘O Descobrimento do Brasil’ e Renato Russo deu uma mensagem subliminar nesse disco, ele falou que estava doente, ele se despede o tempo todo nesse álbum”.

Pouco acima da minha cabeça havia um ninho de pardais, passarinhos agitados e que não paravam de exaltar um canto. O mesmo canto retumbante que vários jovens frenéticos entoaram no Estádio Mané Garrincha num memorável show do grupo de Renato Russo. “Lotaram o estádio e a banda ficou horrorizada com a reação dos fãs ao quebrarem tudo, ai eles se assumiram muito como uma banda punk-rock e as pessoas gritavam: que país é esse? É a porra do Brasil!”.

“Você já viu Somos tão Jovens? Minha vida era aquilo ali, a juventude da época era exatamente aquilo que esta no filme”. E Adiel sendo um ouvinte assíduo de Legião Urbana fez sua peregrinação pelo país, como ator, como hippie. Ganhou prêmios por sua atuação como Oberon em ‘Sonho de uma Noite de Verão’.

Nessas andanças teve a oportunidade de conversar nas coxias dos palcos com atores como Raul Cortez, Betty Gofman e Cristiane Torloni. A última nua em uma cadeira de camarim. Porém, um desses momentos Adiel faz questão de dizer: seu bate papo com Gianfrancesco Guarnieri, ator de ‘Belíssima’, ‘Que Rei sou eu?’,‘Mulheres de Areia’, ‘Vamp’, ‘Terra Nostra’ e tantos outros clássicos da televisão brasileira. E, também, membro do ‘Teatro de Arena’, organização que sofreu pesadas represálias da Ditadura.

“O Gianfrancesco estava nos bastidores de um festival de teatro e fui conversar com ele, estava com um bafo de uísque e com o copo ainda na mão. Foi um momento mágico. Mas sabe, tive a impressão de que ele era uma pessoa completamente desiludida para ser quem era. Era frustrado”. O ator morreu em 2006, aos 71 anos.

O quarto de Adiel é lotado de livros, de vários assuntos, em sua maioria religiosos.

“Você já leu ‘A Menina que Roubava Livros’?”

Respondo que não.

“Eu tinha uma necessidade enorme de ter livros, então quando ia à biblioteca municipal eu roubava, enfiava os livros dentro da blusa e os levava pra casa”. Quando se mudou para Belo Horizonte, em 2003, Adiel encheu sacos de lixo com os livros roubados e de madrugada deixou-os na porta da biblioteca. Um momento cômico pairou no ar quando me disse isso. Mas apenas por um breve momento. Li um trecho do livro posteriormente, e a seguinte frase se encaixa perfeitamente na vida de Adiel. “Como a maioria dos sofrimentos, esse começou com uma aparente felicidade”. As drogas fazem isso, afinal, a felicidade é passageira, a alegria é falsa.

“Aos 13 anos eu já conhecia Shakespeare, Dostoievski, Machado de Assis. De madrugada meu pai vinha brigar comigo porque eu ficava lendo até tarde”.

Em 2013 aconteceu uma edição especial de um famoso festival de teatro em Mogi Guaçu, cidade natal de Adiel. O FETEG comemorou 30 anos e a reunião de velhos e bons amigos foi inevitável. Momentos do passado foram relembrados em uma típica roda de papo confortante. Adiel participou como jurado nessa edição do festival.

Mogi Guaçu foi uma cidade muito agitada pela turma do pacato ator, culturalmente falando e, também, sociavelmente. Vi algumas fotos de sua ‘galera’, algumas me fizeram lembrar os amigos da obra de Stanley Kubrick, Laranja Mecânica. E Adiel era o Malcolm Mcdowell da equipe. Sim, eles deixaram sua marca na cidade. Nas paredes, na mente das pessoas, em fotografias de peças teatrais... nos boletins policiais. O contraste do passado com o futuro é nítido, algo mudou muito no modo de pensar e agir de Machado.

Noto que a juventude da época possuía ainda, o espírito transgressor perante leis e o Regime Militar. Nos anos 80, período da maior atividade artística de Machado, os jovens ainda estavam abastecidos com o frenesi da regressão de conduta imposta pela sociedade. É como se um pássaro passasse a vida toda preso e, abruptamente, fosse solto da gaiola. “Vou estudar psicologia, preciso entender mais as pessoas”, enfatizou.

Quando me preparava para ir embora escutei o trecho de uma música que tocava no rádio, Palavrantiga é o nome da banda.“A cidade está cheia de som; a cidade está cheia de tinta... a cidade está cheia de atores”.Ator um dia, sempre ator. Despeço-me do dogue alemão. Que cachorro!

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